segunda-feira, 15 de junho de 2020

Mudar

A necessidade de mudar não pode ser confundida com a necessidade de continuar em outro caminho. A impossibilidade de se mudar o rumo da história está no medo de mudar seu método. O método que se usa normalmente é a continuação, “a economia não pode parar" é um exemplo desse, de como pensar a história no método da continuação. A economia, mesmo que catastroficamente, como já se esperava, continuou, e com ela as mortes por covid-19. Por que não paramos a economia? Por que não paramos as mortes ainda? Não o paramos porque, por mais que saibamos que continua, não conseguimos continuar de outro jeito. Não mudamos o rumo da história. 

Nós continuamos assim, infelizmente, e é preciso continuar de outro jeito. Isso nós sabemos. 

Porém, o método da continuidade somente permite ver o mundo continuar, com um começo que liga num meio que liga num fim, tudo em uma linha fina da qual tememos a ruptura, mas que nos move a querer sempre uma continuidade diferente de seu ponto de partida. A mudança, segundo esse método, nunca ocorre porque esse ponto é sempre intransponível, o ponto de partida: nosso passado, que nunca muda. O ápice desse método é inércia, é dizer: é impossível mudar porque, se as coisas continuam e não voltam nunca mais 

- ou a mudança acontece, mas não a controlamos e estamos na mão do "destino inevitável", que ironicamente gosta de repetições; 
- ou nunca poderíamos mudar completamente as coisas pois partiríamos sempre de um passado atrapalhado por contingências não escolhidas, ou escolhas mal sucedidas. 

Para continuar diferente seria preciso, no mínimo, mudar esse ponto inicial. Começar de novo. Nascer de novo, praticamente. Seria preciso morrer. Colocar em cheque nossa forma de vida. Optar, não pela continuidade dela, mas à descontinuidade. Suicídio? É o que se fala sobre Brasil atualmente: "a esquerda precisa morrer" se não teremos um "estado suicidário", diz Safatle. Como evitar o suicídio? Como mudar de ideia? Como fazer as pessoas mudarem de ideia? Acredito que o filme “Inception” brinque com esse drama. Como agir livremente, independente daquele ponto inicial? Como não continuar cometendo os mesmos erros que ligam de maneira infernal essa linha? Como não repetir os mesmos erros na nossa história? Como evitar o fascismo?

Descontinuidade. Sim, a morte é uma opção sensata diante do inevitável. Ainda que lembremos dessa máxima de Inception, também podemos lembrar que Freud faz algo parecido ao confessar que o que ele acreditava ser o guardião da vida, o impulso de autoconservação, era na verdade guarda-costas da morte, responsável pelo mais belo dos ritmos que poderíamos conhecer:

“é como um ritmo hesitante na vida dos organismos; um grupo de instintos precipita-se para frente, afim de alcançar a meta final da vida o mais rapidamente possível; atingida uma determinada altura desse caminho, o outro corre para trás afim de retomá-lo de um certo ponto e assim prolongar a jornada.” (p. 208). 

O curso da vida é o mesmo que o da morte, eles não se opõe, um viabiliza o outro. 
Minha neófita leitura, mas acredito que cabe dizer assim: devemos olhar como Freud. Não conseguir continuar de outro jeito se deve, não ao modo como lidamos com a continuidade, é necessário olhar para seu guarda-costas, não conseguir continuar de outro jeito, se deve ao modo como lidamos com a descontinuidade. Assim, a descontinuidade aparece não mais como o caminho da morte, mas o da vida, ainda que como uma inevitável caminhada em direção a morte. O caminho inevitável aí é outro, porque método é outro. A necessidade de mudar de caminho não é a necessidade de continuar um outro, mas sim de não continuar o mesmo. 

A ideia de "destino inevitável" e suas repetições irônicas - ou mesmo místicas como brinca a série "Dark" - vai existir enquanto a morte inevitável for o único caminho a ser seguido. É preciso vê-lo de maneira diferente. "As pessoas vão morrer com coronavírus, 10, talvez 20.000 pessoas... é alguma coisa, mas não é só por isso que a economia deve parar", disseram algo desse tipo famosos investidores e o atual presidente. Eles sabem que a morte é inevitável, mais breve ainda se você for negro e pobre. O método deles parte desse ponto, as condições históricas, eles querem mantê-las cotidianamente. É de uma inteligência notável. Mas, ainda assim, é um método medroso e limitado enquanto fascista, que prefere continuar matando do que morrer em busca de uma vida melhor, que prefere a morte do que o risco de vida. Morte e risco de vida, são diferentes. 

Não somente estar em um país presidido por Bolsonaro é risco de vida. Isolamento social, lockdown, renda mínima e sair nas ruas para arrancar o presidente do poder, tudo isso ainda é correr risco de vida, porém é priorizá-la, é escolher a vida no lugar de optar pela morte "inevitável". Correr risco é inevitável, ter medo de arriscar a vida não. 

A força que uma represa faz sob uma barragem é um evento natural, inevitável, mas a produção da represa ou o cuidado para não ser destruída pela força natural, não. A chuva que irrompe no filme Parasitas e inunda a casa dos Kim e não a dos Park, é um evento natural, assim como o coronavirus e a morte. Mas a desigualdade social, as condições históricas, não. Elas não são naturais. Pobres, ricos, brancos e negros morrem por causas naturais. Mas pobres e negros morrem mais em menos tempo do que brancos e ricos por causas naturais. A gravidade, a chuva, os efeitos do coronavirus, a morte são praticamente inevitáveis, mas as tomadas de decisão que os envolvem, não. 

Há medo nas tomadas de decisão, assim como há medo de escolher sair na rua para ir ao supermercado e, sem querer, pegar coronavirus e morrer. É como ter medo de dar o próximo passo em falso numa caminhada e, sem querer, cair e morrer. É claro, precisamos não ter medo, senão não damos passo algum. Mas também é preciso saber caminhar com medo, pois é preciso lembrar que é uma escolha continuar a caminhada e, outra escolha, pará-la. A pandemia é uma caminhada e, no Brasil bolsonarista, em direção ao precipício. Se não soubermos caminhar com medo para saber parar, se, pelo contrário, tivermos medo de parar, isso não será temer a morte, será, na verdade, temer o risco de vida, temer prolongar a jornada, temer a vida. Não parar é um jeito diferente de continuar, constatar que continuamos é simplesmente continuar diferente. Mudar, não. Mudar é descontinuar. 

A caminhada em direção a morte é na rua, onde tememos pegar coronavirus, onde a polícia corre pra matar mais pobres e negros, onde movimentam-se as operações em que policiais negros morrem mais que policiais brancos, onde estão empregadas domésticas atravessando a cidade de transporte público, onde está a população mais pobre em fila à espera de receber um mísero auxílio do governo, onde muitos estão em fila para trabalhar e comprar nos shoppings, onde estão comerciantes autônomos, onde estão motoboys e ciclistas da rappi. Enfim, onde com a pandemia se continua, mesmo que diferente. Assim caminha o Brasil. É a caminhada do fascismo. Ela não deixará de acontecer enquanto a rua for o caminho da morte. É preciso ver como Freud e tomá-la como o único caminho possível da vida, para parar o fascismo, mudar o caminho e prolongar a jornada.
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¹ FREUD, S. Além do princípio do prazer (1920). In: FREUD, S. Obras completas, volume 14: História de uma neurose infantil ("O homem dos lobos"), Além do princípio do prazer e outros textos(1917-1920). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 208.

Marcel Delfino Carvalho de Souza