sábado, 30 de maio de 2020

Momentos de ânimo e momentos de estranhamento

Existem momentos em que a gente acha que entendeu o modo de explicar como as coisas são no mundo. Nesses momentos, nos sentimos pertencentes a um mundo no qual somos autônomos na sua produção, sentimos poder explicar as coisas desse mundo, e que nossas explicações são bem entendidas pelos outros.
Mas há momentos em que nossas explicações param de nos colocar nesse mundo comum, como se estivéssemos fazendo de um jeito diferente, um jeito que os outros não nos entendem. Nesses momentos, aquele mundo do qual fazíamos parte perde sua realidade e, de repente, a gente se sente estranho, sem saber falar sobre o mundo, sem saber falar sua língua, se sente estrangeiro a ele.
Certamente, alguém poderia dizer com ânimo nessa ocasião: "aí é que é o local produtivo, aí que podemos enfrentar o desabrigo e produzir morada, acolher as diferenças, criar arranjos estranhos, infamiliares e, com eles, se habituar, habitar o mundo".
Quase um hino, a frase. Mas esse "ânimo", por mais compreensivo que pareça, é distante, pouco solidário e indiferente. É o discurso de um patriado falando do estrangeiro "ai como é bom ser estrangeiro!". Nesse caso, o objeto da fala do patriado não é o estrangeiro, mas a si mesmo, o estrangeiro lhe serve somente de apoio momentâneo para sustentar sua posição tranquila no estranho encontro com ele. Ele explica, na língua do mundo do qual faz parte, o estrangeiro.
Enquanto o estrangeiro não tem esse ânimo, nem mesmo o deseja. Ele deseja, na verdade, confiança de que se pode falar com outros estranhos esquecendo o lugar onde se encontram. Constatar que não se sabe onde está, que não é daí, não é animador. É um trabalho de poucas palavras, de difícil explicação. É possível que nenhuma explicação caiba nesse espaço. Talvez seja esse um trabalho impossível e, por isso, sua continuidade dependa da confiança.
Falar do encontro com estranhos é fácil, narcísico. Onde se é entendido, onde se sabe falar é tranquilo falar. Não é daí que será possível acolher o estrangeiro. Para isso o método deverá ser outro.

Marcel Delfino Carvalho de Souza

sexta-feira, 15 de maio de 2020

As aparências enganam

O ser humano tem uma camurça de espanto. Ela muda no presente conforme ele reage ao passado. 
Seu olhar para as coisas no presente não é direto. Ele dá uma volta nas coisas. De costas para as coisas enquanto olha para sua memória. Não chega nem a encostar nas coisas. 
Sua volta é cega e de completo estranhamento. Quando a completa, lembra dela, se espanta e vê.
O ser humano vive assim. Num constante estranhamento com as voltas e em espanto com o mundo, mudando de aparência imerso na aparição das coisas em sua vida. 
Será que as coisas também vivem assim?
Marcel Delfino Carvalho de Souza