sexta-feira, 9 de abril de 2021

Eu quis dizer: um blog para salvar o mundo

O mundo é maior do que o nosso desejo de fazê-lo ser bom. O nosso desejo de fazer o mundo ser bom não é uma expressão legítima do mundo pedindo para se tornar bom, não é um pedido pela sua ajuda. 

Pela ideia da necessidade de ajudar o mundo nos colocamos em uma relação com ele, o mundo fica na posição de algo abandonado que precisa da nossa ajuda, de modo que assumimos a posição dos Salvadores. Essa ideia que também pode ser chamada de "boa intensão de salvar o mundo", o "pobre mundo abandonado", somente serve para esconder o legítimo medo de estar passivo ao mundo, de nele estar implicado, isto é, de inevitavelmente ser o motivo de, talvez, o mundo precisar de ajuda. A forma da "boa intenção" traduz esse medo de não poder fazer nada, em possibilidade de fazer tudo com a pouco sóbria intensão consciente de querer salvar o mundo. Portanto, a ação que procura salvar o mundo, e que só se justifica por ser bem intencionada, não é nada além do que uma forma de sair da posição do abandono, ou melhor, de negá-la, para assumir então uma posição de Salvador, do passivo em direção ao ativo.

Será que o mundo precisa mesmo da sua ajuda? Com tudo isso, eu ainda acho que sim, mas essa ajuda exige um legítimo aprendizado, caríssimo.

Aprender legitimamente é aprender depois. Não se trata de protelar o aprendizado igual fazem os ditos Salvadores que, apesar de saberem que o mundo é imenso, preferem acreditar que as boas intenções, o querer fazer ensina algo antes de pensar os efeitos objetivos da ação na imensidão do mundo. 

A lógica do aprendizado legítimo é que ele vem depois de queremos saber. Não é que jamais aprenderemos, mas que não aprenderemos quando queremos. O fato de não se saber algo não confirma que você nunca vai saber esse algo, apenas te coloca na pequena posição que você ocupa na verdadeira imensidão do mundo: a posição em que o seu sofrimento por não saber quando quer, não é o maior sofrimento do mundo. Essa é a parte difícil e legítima, permanecer nessa posição, encarar sua necessidade desumilde e tão menor de saber algo importante, de fazer algo importante.

Sabendo que o mundo importa mais que nosso desejo de fazê-lo bom, somente assim podemos ajudá-lo, nos dispondo no mais íntimo da nossa burrice, para ouvir o que, de fato, é necessário e aprender o que é importante. O que é importante você não sabe ainda, é necessário saber esperar e ouvir.

O tempo é chave da questão, o tempo de vida. Pois cada segundo que passa e você sente passar, só acontece pois o mundo existe e possibilita a você sentir isso. Sem fome, sem medo de morrer é fácil agradecê-lo por isso. Mas, em um mundo minúsculo como o nosso, na imensidão do espaço, onde conseguimos fazer com que uma minoria possa comer tudo o que quiser e uma maioria não ter nada o que comer, agradecer por estar vivo não é ser grato, é na verdade poder ignorar o verdadeiro peso da fome, o verdadeiro peso do mundo, que talvez nos permitiria pensar, em vez de sermos gratos pela vida, o quão melhor seria se não tivéssemos nascido.

Essa última conclusão é necessária e ela acontece em um espaço de tempo que não acaba no arrependimento. Há um outro momento para quem assumir sobriamente que o próprio sofrimento não é o maior sofrimento do mundo, que ele não é nada perto da própria imensa ignorância. Esse terceiro momento vem depois de conseguirmos encarar o abandono não mais como Salvadores; depois de termos coragem de legitimar o abandono e abandonar o mundo em que não se sabe o que a fome é para salvar o mundo que ainda não se conhece.

Isso depende de sermos francos com o nosso ínfimo conhecimento, legitimando nossa burrice que só fala a própria língua. Se não formos sinceros a ponto de saber perguntar “será que o mundo precisa mesmo dessa minha ajuda?”, jamais ouviremos um chamado legítimo do mundo, jamais seremos capazes de entender em que línguas o mundo pede ajuda, jamais saberemos decifrar esse pedido que dura enquanto estiver vivo e que pode estar do seu lado, agora, mais perto do que imagina.

Talvez a grande descoberta, com isso, seja que entendamos que não queremos salvar o mundo e que, mesmo assim, é o que precisamos fazer. É como aprender a falar outra língua. Até entendermos o que nela se é possível dizer queremos falar um monte de coisas da nossa própria. Aprender outra língua é aprender a dizer o que você ainda não disse, o que ainda não quis dizer. Da mesma forma, a ação transformadora vem para fazer o que nunca foi feito, fazendo o que não quisemos fazer.

Por um lado, isso pode parecer um trabalho, "fazer o que não queremos", o que não é mentira, salvar o mundo deve dar trabalho, mas não se resume a isso. Por outro, aponta para um abandono radical do que achamos que queremos, em direção a algo outro, que ainda vamos descobrir. Descobrir como salvar um mundo não conhecido coincidirá com aprender a querer algo jamais querido, como se fosse querer pela primeira vez. E essa talvez seja a grande recompensa, a potência incessante de uma ação movida por um querer que jamais será o mesmo, num mundo que jamais será o mesmo, isto é, a potência de agir pela primeira vez para sempre.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Mudar

A necessidade de mudar não pode ser confundida com a necessidade de continuar em outro caminho. A impossibilidade de se mudar o rumo da história está no medo de mudar seu método. O método que se usa normalmente é a continuação, “a economia não pode parar" é um exemplo desse, de como pensar a história no método da continuação. A economia, mesmo que catastroficamente, como já se esperava, continuou, e com ela as mortes por covid-19. Por que não paramos a economia? Por que não paramos as mortes ainda? Não o paramos porque, por mais que saibamos que continua, não conseguimos continuar de outro jeito. Não mudamos o rumo da história. 

Nós continuamos assim, infelizmente, e é preciso continuar de outro jeito. Isso nós sabemos. 

Porém, o método da continuidade somente permite ver o mundo continuar, com um começo que liga num meio que liga num fim, tudo em uma linha fina da qual tememos a ruptura, mas que nos move a querer sempre uma continuidade diferente de seu ponto de partida. A mudança, segundo esse método, nunca ocorre porque esse ponto é sempre intransponível, o ponto de partida: nosso passado, que nunca muda. O ápice desse método é inércia, é dizer: é impossível mudar porque, se as coisas continuam e não voltam nunca mais 

- ou a mudança acontece, mas não a controlamos e estamos na mão do "destino inevitável", que ironicamente gosta de repetições; 
- ou nunca poderíamos mudar completamente as coisas pois partiríamos sempre de um passado atrapalhado por contingências não escolhidas, ou escolhas mal sucedidas. 

Para continuar diferente seria preciso, no mínimo, mudar esse ponto inicial. Começar de novo. Nascer de novo, praticamente. Seria preciso morrer. Colocar em cheque nossa forma de vida. Optar, não pela continuidade dela, mas à descontinuidade. Suicídio? É o que se fala sobre Brasil atualmente: "a esquerda precisa morrer" se não teremos um "estado suicidário", diz Safatle. Como evitar o suicídio? Como mudar de ideia? Como fazer as pessoas mudarem de ideia? Acredito que o filme “Inception” brinque com esse drama. Como agir livremente, independente daquele ponto inicial? Como não continuar cometendo os mesmos erros que ligam de maneira infernal essa linha? Como não repetir os mesmos erros na nossa história? Como evitar o fascismo?

Descontinuidade. Sim, a morte é uma opção sensata diante do inevitável. Ainda que lembremos dessa máxima de Inception, também podemos lembrar que Freud faz algo parecido ao confessar que o que ele acreditava ser o guardião da vida, o impulso de autoconservação, era na verdade guarda-costas da morte, responsável pelo mais belo dos ritmos que poderíamos conhecer:

“é como um ritmo hesitante na vida dos organismos; um grupo de instintos precipita-se para frente, afim de alcançar a meta final da vida o mais rapidamente possível; atingida uma determinada altura desse caminho, o outro corre para trás afim de retomá-lo de um certo ponto e assim prolongar a jornada.” (p. 208). 

O curso da vida é o mesmo que o da morte, eles não se opõe, um viabiliza o outro. 
Minha neófita leitura, mas acredito que cabe dizer assim: devemos olhar como Freud. Não conseguir continuar de outro jeito se deve, não ao modo como lidamos com a continuidade, é necessário olhar para seu guarda-costas, não conseguir continuar de outro jeito, se deve ao modo como lidamos com a descontinuidade. Assim, a descontinuidade aparece não mais como o caminho da morte, mas o da vida, ainda que como uma inevitável caminhada em direção a morte. O caminho inevitável aí é outro, porque método é outro. A necessidade de mudar de caminho não é a necessidade de continuar um outro, mas sim de não continuar o mesmo. 

A ideia de "destino inevitável" e suas repetições irônicas - ou mesmo místicas como brinca a série "Dark" - vai existir enquanto a morte inevitável for o único caminho a ser seguido. É preciso vê-lo de maneira diferente. "As pessoas vão morrer com coronavírus, 10, talvez 20.000 pessoas... é alguma coisa, mas não é só por isso que a economia deve parar", disseram algo desse tipo famosos investidores e o atual presidente. Eles sabem que a morte é inevitável, mais breve ainda se você for negro e pobre. O método deles parte desse ponto, as condições históricas, eles querem mantê-las cotidianamente. É de uma inteligência notável. Mas, ainda assim, é um método medroso e limitado enquanto fascista, que prefere continuar matando do que morrer em busca de uma vida melhor, que prefere a morte do que o risco de vida. Morte e risco de vida, são diferentes. 

Não somente estar em um país presidido por Bolsonaro é risco de vida. Isolamento social, lockdown, renda mínima e sair nas ruas para arrancar o presidente do poder, tudo isso ainda é correr risco de vida, porém é priorizá-la, é escolher a vida no lugar de optar pela morte "inevitável". Correr risco é inevitável, ter medo de arriscar a vida não. 

A força que uma represa faz sob uma barragem é um evento natural, inevitável, mas a produção da represa ou o cuidado para não ser destruída pela força natural, não. A chuva que irrompe no filme Parasitas e inunda a casa dos Kim e não a dos Park, é um evento natural, assim como o coronavirus e a morte. Mas a desigualdade social, as condições históricas, não. Elas não são naturais. Pobres, ricos, brancos e negros morrem por causas naturais. Mas pobres e negros morrem mais em menos tempo do que brancos e ricos por causas naturais. A gravidade, a chuva, os efeitos do coronavirus, a morte são praticamente inevitáveis, mas as tomadas de decisão que os envolvem, não. 

Há medo nas tomadas de decisão, assim como há medo de escolher sair na rua para ir ao supermercado e, sem querer, pegar coronavirus e morrer. É como ter medo de dar o próximo passo em falso numa caminhada e, sem querer, cair e morrer. É claro, precisamos não ter medo, senão não damos passo algum. Mas também é preciso saber caminhar com medo, pois é preciso lembrar que é uma escolha continuar a caminhada e, outra escolha, pará-la. A pandemia é uma caminhada e, no Brasil bolsonarista, em direção ao precipício. Se não soubermos caminhar com medo para saber parar, se, pelo contrário, tivermos medo de parar, isso não será temer a morte, será, na verdade, temer o risco de vida, temer prolongar a jornada, temer a vida. Não parar é um jeito diferente de continuar, constatar que continuamos é simplesmente continuar diferente. Mudar, não. Mudar é descontinuar. 

A caminhada em direção a morte é na rua, onde tememos pegar coronavirus, onde a polícia corre pra matar mais pobres e negros, onde movimentam-se as operações em que policiais negros morrem mais que policiais brancos, onde estão empregadas domésticas atravessando a cidade de transporte público, onde está a população mais pobre em fila à espera de receber um mísero auxílio do governo, onde muitos estão em fila para trabalhar e comprar nos shoppings, onde estão comerciantes autônomos, onde estão motoboys e ciclistas da rappi. Enfim, onde com a pandemia se continua, mesmo que diferente. Assim caminha o Brasil. É a caminhada do fascismo. Ela não deixará de acontecer enquanto a rua for o caminho da morte. É preciso ver como Freud e tomá-la como o único caminho possível da vida, para parar o fascismo, mudar o caminho e prolongar a jornada.
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¹ FREUD, S. Além do princípio do prazer (1920). In: FREUD, S. Obras completas, volume 14: História de uma neurose infantil ("O homem dos lobos"), Além do princípio do prazer e outros textos(1917-1920). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 208.

Marcel Delfino Carvalho de Souza

sábado, 30 de maio de 2020

Momentos de ânimo e momentos de estranhamento

Existem momentos em que a gente acha que entendeu o modo de explicar como as coisas são no mundo. Nesses momentos, nos sentimos pertencentes a um mundo no qual somos autônomos na sua produção, sentimos poder explicar as coisas desse mundo, e que nossas explicações são bem entendidas pelos outros.
Mas há momentos em que nossas explicações param de nos colocar nesse mundo comum, como se estivéssemos fazendo de um jeito diferente, um jeito que os outros não nos entendem. Nesses momentos, aquele mundo do qual fazíamos parte perde sua realidade e, de repente, a gente se sente estranho, sem saber falar sobre o mundo, sem saber falar sua língua, se sente estrangeiro a ele.
Certamente, alguém poderia dizer com ânimo nessa ocasião: "aí é que é o local produtivo, aí que podemos enfrentar o desabrigo e produzir morada, acolher as diferenças, criar arranjos estranhos, infamiliares e, com eles, se habituar, habitar o mundo".
Quase um hino, a frase. Mas esse "ânimo", por mais compreensivo que pareça, é distante, pouco solidário e indiferente. É o discurso de um patriado falando do estrangeiro "ai como é bom ser estrangeiro!". Nesse caso, o objeto da fala do patriado não é o estrangeiro, mas a si mesmo, o estrangeiro lhe serve somente de apoio momentâneo para sustentar sua posição tranquila no estranho encontro com ele. Ele explica, na língua do mundo do qual faz parte, o estrangeiro.
Enquanto o estrangeiro não tem esse ânimo, nem mesmo o deseja. Ele deseja, na verdade, confiança de que se pode falar com outros estranhos esquecendo o lugar onde se encontram. Constatar que não se sabe onde está, que não é daí, não é animador. É um trabalho de poucas palavras, de difícil explicação. É possível que nenhuma explicação caiba nesse espaço. Talvez seja esse um trabalho impossível e, por isso, sua continuidade dependa da confiança.
Falar do encontro com estranhos é fácil, narcísico. Onde se é entendido, onde se sabe falar é tranquilo falar. Não é daí que será possível acolher o estrangeiro. Para isso o método deverá ser outro.

Marcel Delfino Carvalho de Souza

sexta-feira, 15 de maio de 2020

As aparências enganam

O ser humano tem uma camurça de espanto. Ela muda no presente conforme ele reage ao passado. 
Seu olhar para as coisas no presente não é direto. Ele dá uma volta nas coisas. De costas para as coisas enquanto olha para sua memória. Não chega nem a encostar nas coisas. 
Sua volta é cega e de completo estranhamento. Quando a completa, lembra dela, se espanta e vê.
O ser humano vive assim. Num constante estranhamento com as voltas e em espanto com o mundo, mudando de aparência imerso na aparição das coisas em sua vida. 
Será que as coisas também vivem assim?
Marcel Delfino Carvalho de Souza

quinta-feira, 30 de abril de 2020

LIBERDADE INDETERMINADA

I

A crítica da liberdade preditiva tem seu melhor argumento quando fala sobre ideologia. Ela diz “a liberdade só é possível no nível da ideologia”. O sujeito é determinado por ela, quando acredita que é livre, isso quer dizer: sua sensação de saber-se livre é determinada por condições objetivas por ele não percebidas.

No primeiro texto eu questionei esse argumento da ideologia, dizendo que, se os críticos da liberdade acusavam a crença sobre o sentimento de liberdade, por que é que não seria razoável acusar também a crença sobre o sentimento de se ter apreendido a ideologia usada para criticar a liberdade? Agora, entendo que eu ainda não tinha visto esse arranjo específico que o crítico da liberdade faz, partindo do argumento da ideologia para falar que não somos livres. Articular a ideia de ideologia não era o problema dessa crítica. O problema, na verdade, era a articulação por ela feita com o argumento da ideologia, principalmente a articulação com as consequências deterministas desse argumento.


A crítica da liberdade, quando disse ser “a liberdade” impossível, criticou, ainda que sem saber, uma liberdade intangível em sua conceituação, a saber, a liberdade preditiva. Esta é uma específica noção de liberdade, uma liberdade baseada na ideia de predição. Sua estrutura é: alguém diz que fará algo, demonstrando sua intensão, em seguida, age conforme havia dito; pela prova de predição, opera um ligamento entre presente e futuro. Um exemplo dessa é a ideia de escolher mexer um braço, enunciando tal intenção, e em seguida mexê-lo, comprovando a intensão anterior. Isto é, confirmando a causa de uma ação intencionalmente livre.
"Liberdade preditiva".
Portanto, a liberdade preditiva seria aquela da capacidade de prever o futuro, de provar que intenções e vontades presentes modificam o futuro livremente. Diante dessa, o crítico iria dizer que a consciência de sua capacidade é ilusória, pois não consegue perceber que a própria enunciação e também ato são ambos determinados por condições imperceptíveis imediatamente. Ela diria algo como
“a sensação de liberdade em si já é um julgamento socialmente aprendido ao longo da formação do sujeito sobre seus sentimentos e ações; logo, o ser diante de suas sensações e crenças antes nos mostra delas ser um escravo do que autônomo com relação ao mundo e a si a partir delas; o sujeito é um escravo de sua sensação de liberdade, pois, sob ela, ele não percebe o que a condiciona, isto é, os determinantes históricos que implicam ele a senti-la” (crítico da liberdade - eu sei, viagem minha).
O argumento da ideologia, usado pela crítica à liberdade é muito bom porque usa a ideia de que, a aparente liberdade imediata, como mexer um braço segundo as próprias intenções, pode esconder condições mediadas historicamente, que determinam essencialmente tanto a intensão do sujeito quanto sua ação. Além disso, o argumento da ideologia coloca um dado de realidade intransponível: essas condições históricas foram formadas em um passado irreversível e que nos determina constantemente, além disso, sem que o saibamos.
"Argumento da ideologia" usado pelo crítico da liberdade.
O argumento da ideologia é bom, mas o crítico da liberdade não o compreende na sua potência contra-ideológica. Ele entende da maneira como está na foto, ainda vê com um olhar voltado para o futuro. O problema da liberdade para ele é de entender-se como livre de determinações o caminho para o futuro. Ele acredita na lógica prova-comprovação. Só entende que quem se acredita livre está sendo ideologicamente manipulado, ele não supera a lógica prova-comprovação, permanece nela e diz “a liberdade existe mas ela é impossível, quem acredita ser possível, está em uma posição na luta de classes que a impele dizer isso… ou seja lá quais forem os motivos, sempre será o caso de não perceber ao certo a história”.

Essa ideia de história do crítico da liberdade culmina em um presente fixo, fatalista, no qual não se é possível agir e mudar intencionalmente o mundo. Sempre seremos fracassados na tentativa da predição, fazer como temos a intensão, está sempre poderá estar sendo determinada. E isso se deve a pouco corajosa conjugação entre liberdade preditiva, baseada em uma lógica temporal de predição, ao argumento da ideologia, baseado numa lógica temporal da mediação histórica. Aí mora o nó do fatalismo, e é necessário entender como se dá esse nó para saber como desdá-lo.
 O crítico da liberdade conjuga o modelo preditivo de ação com o princípio de determinação e irreversibilidade do futuro.
A liberdade preditiva, quando conjugada a mediação histórica, deveria se tornar inexistente, porque, em um presente determinado e inapreensível efetivamente, a ação-livre não pode existir, portanto, não seria razoável dizer nem que ela é possível ou impossível.

Seria razoável imaginar que a busca por outro modo de se entender a liberdade, em vez de insistir na sua permanência, acontecesse. Mas o que na verdade acontece é: de inexistente ela se torna impossível, vai para um mundo ideal porém com o mesmo modo de compreendê-la. Isso fica ainda mais evidente com a famosa frase “somos livres mas somente no nível da ideologia”, que, em outras palavras, se diz “a liberdade existe, mas não é possível, a liberdade na verdade só pode existir enquanto impossível”.

Essa é uma operação curiosa de duplicação¹. Em vez do crítico lidar com a inexistência da liberdade, ela ganha um duplo, a liberdade é dobrada em liberdade impossível e liberdade possível, ideal e real. Isso se deve ao elo ideológico entre o determinismo da mediação histórica e a liberdade preditiva. A incapacidade do crítico da liberdade viver sem ela revela uma incompreensão sobre o que ela é e, também, sobre sua função ideológica.

O crítico da liberdade não vê liberdade preditiva, vê liberdade apenas, e isso porque não entende a estrutura da lógica prova-comprovação.

Antes de ser um método de previsão, predição, o método prova-comprovação é um modo de reconhecimento. Liberdade preditiva não se trata de conseguir ver o futuro, mas sim de um modo de olhar para o passado. Antes da intenção tornar-se uma prova, ela é enunciado. Somente depois do ato, ela torna-se prova, que comprova o ato como ato-intencionado. É nessa lógica que a liberdade preditiva opera, de acreditar, quando reconhece o passado, ter previsto o futuro².

Escapa ao crítico da liberdade essa operação em que se criam os momentos de causa e consequência somente depois do ato, num movimento de reconhecimento.
Os críticos da liberdade, quando criticam essa liberdade preditiva pela ideologia, o fazem com razão: é ilusória essa ideia de predição. Mas aí algo acontece. A crítica da ilusão da predição se transforma em um processo de comprovação da impossibilidade da liberdade, em vez de tornar-se um processo de elaboração de uma liberdade mais complexa, uma liberdade que não apenas que se assegurasse na incompreensão de suas operações lógicas.
Reconhecimento, responsável por formar os momentos. É na sua estrutura que o "argumento da ideologia" deveria se pautar, porém a ignora.

O argumento da ideologia leva o sujeito que a enuncia a uma posição em que deve conhecer, confrontar um presente, integralmente determinado pelo passado, irreversível e inescrutável. Nesse lugar onde se encontra, pós-crítica, deve assumir que todas as comprovações da sua liberdade e capacidade de agir como se quer, se sustentam na tranquilidade de não se saber sobre as operações lógicas formadoras das certezas que tem. Tranquilidade que esconde um desconhecimento constante e um descontrole sobre si permanente, pois nada do que nos determina podemos saber ou controlar. Mas o que fazer com isso? Eu não sei ao certo, mas sei o que faz o crítico da liberdade. 


II

Ainda me pego atordoado reviravolteando meus primeiros questionamentos dessa busca. Descobri, nessa investigação, a liberdade, mas também, infelizmente, que o lugar de onde ela é visível fica em meio a turva confusão e violência.

No começo eu pensava em fazer uma objeção a uma crítica que comumente se faz a liberdade, que a considera impossível. Junto dessa crítica, queria também desenvolver no lugar dessa liberdade impossível, uma liberdade possível. Agora, essa procura vem se revelando mais como uma denúncia a um determinismo medroso, enquanto aquele objetivo de falar da liberdade real tem ficado cada vez mais difícil de seguir, principalmente porque, do fim do segundo texto para cá, escrevi um monte de considerações estabanadas, textos e textos sem fim. A cada reflexão que me detive mais portas se abriam e todas convergiam para a confirmação da realidade da liberdade. Mas aí… parece que falar dela desafiava essa sua realidade. Tomei a decisão, então, de escrever esse texto assim, esclarecendo essa condição desafiadora.

Somos irreversivelmente determinados e está fora de nosso alcance saber de tudo, lembrar de tudo, a ponto de podermos afirmar que não temos nenhum controle sobre os determinantes. Eles podem estar na base de nossas ações, na base de nossas certezas, de nossas lembranças e esquecimentos, reconhecimentos, na base de quem somos. 

Podemos no máximo, diante dessa infeliz condição, tranquilizarmo-nos dizendo que “sabemos que não sabemos”, parafraseando grandes filósofos, mas com uma correlação que não vai além de homofonia. Saber que não se sabe é a melhor metáfora da dobra da liberdade. Pois a justificativa está no “saber”, o grande “saber de alguma coisa pelo menos”, que esconde um medo de lidar com a infeliz condição da liberdade: a incerteza.

Então o desafio é: como confiar em incertezas? Se não somos nós que nos determina e controla, como confiar na própria ação? Se nossa certeza sobre o futuro se baseia no tranquilo desaperceber das bases das certezas, seja estar certo de não ter o controle ou estar certo de ter controle, como distinguir o que é real e o que é tranquilidade torpe? Se não sabemos os determinantes, como saber o justo e o injusto?

A conclusão do crítico da liberdade é a dobra entre liberdade possível e impossível, que corresponde a uma dobra conjunta da realidade, em real e ideal. Para ele, o justo é impossível, ideal. Nós temos então que nos contentar com o injusto que é real. O mundo poderia ser bom, mas toma-se como figura de bom senso que ele não é.

Então, tem-se uma ótima justificativa para se perpetuarem as violências das classes dominantes sobre as dominadas. Uma ótima justificativa para ser omisso diante da injustiça e, além disso, tranquilizar-se frente a angustiante incerteza sobre o justo e o injusto. O crítico da liberdade prefere ignorar a incerteza de um futuro para assumir a pouco corajosa e razoável certeza de que as coisas são assim e o ser humano não tem culpa da sua natureza torpe, pois ninguém tem culpa de ser incapaz de tudo lembrar, "nada é perfeito nesse mundo". Ele prefere se livrar dessa responsabilidade, tranquilizar-se. Com  o argumento "ninguém é livre, somente o é no nível da ideologia", sua omissão justifica-se como um "silêncio-sensato". Prefere justificar seu não-saber como sendo uma "omissão inteligente", do que assumir o seu não-saber e se colocar a ouvir³. Só expressa bom senso, “pé no chão” e sensatez, enquanto se faz tranquilizadora.

O presente é determinado e indeterminado. Por ele não caber na certeza imediata dos determinantes, sua constante irreversibilidade não a toa tende a nos ser fonte de angustia. O imediato, quando combinado com essa infeliz mas real condição temporal determinista, de que tudo se vai para nunca mais voltar, cria uma tensão. A opacidade é sua forma mais fidedigna, sua aparência estática é turva, pois se sabe que a mudança é incessante e irreversível, mas ali as coisas parecem paradas. O presente imediato esconde uma história não contada que pode mudar o que se sabe até então sobre o passado e, também, sobre o próprio presente. O crítico da liberdade prefere dizer que é impossível saber essa história. Impossível porque não sabe esperar, lida mal com essa espera.

Essa situação na qual a história por vir está fora do campo de visão mas a ser espreitada, é a situação em que se pode confundir o indeterminado com o ideal, situação em que se pode transformar o presente em comprovação do passado que então continua a ser como sempre foi, determinado, imutável. Essa é a maneira do crítico da liberdade lidar com a angustia do presente indeterminado. Ele não suporta o medo dessa indeterminação e descontrole absolutos. Nessa condição, é necessário algo além da certeza de um raciocínio para obliterar a tensão e tranquilizar-se, algo que impeça a permanência da indeterminação e da dúvida. Chama-se “fato”, indubitável. Somos determinados, isso é um “fato”, dizem os críticos da liberdade.

Sabe-se, como fiz questão de esclarecer em meu segundo texto, que a noção de fato só é concebível numa perspectiva sobre o passado na qual os acontecimentos são auto-testemunhas de si, independem dos sujeitos observadores ou narradores. Perspectiva que apenas se legitima na medida em que suprime sua condição da histórica, que para as coisas "se passarem" (tornarem-se passado) elas dependem dos humanos para vê-las e dizerem-nas. Pois as coisas são cegas e mudas e os humanos não. Essa é a diferença que os críticos da liberdade não aceitam, pela maneira como lidam com seu passado, temem lidar com o que é cego, tanto com as coisas quanto com suas paixões. Preferem um presente seguro à um presente constantemente diferente. Preferem o “fato” de que as coisas sempre foram assim, do que o corajoso momento de falar sobre as coisas serem assim. Falar e ouvir medos, entrar na história das coisas não ditas e não mais suprimí-la.

As coisas podem ser cegas e mudas, mas as coisas não são confusas, isso cabe ao humano dizer, e é daqui que eu digo, no meio de muita confusão e violência. Mas olhando para o que é cego e não fala, para o que nos é turvo, incerto. Tranquiliza-se a angustia quando se diz o “fato”, pois assume-se uma certeza asseguradora. Também assume-se uma certeza quando se diz que as coisas são confusas, quando se diz que as coisas são absurdas. Mas assim, ainda que claudicando, vejo-me superando — pois foi um equívoco meu ter acreditado nisso — a ideia primeira de sair da liberdade impossível para a possível, indo agora para algo indeterminado, não mais entre o real e o ideal, mas entre o real e o incerto, que por enquanto tranquilizo-me chamando de absurdo.
“De resto, talvez um poeta (Rückert, nos Macamas, de Hariri) nos console pelo vagaroso progresso de nosso conhecimento:
‘O que não podemos alcançar voando, devemos alcançar
[claudicando. (…)
Segundo as Escrituras, não é pecado claudicar.’” (de Freud em “Além do Princípio do Prazer, 1920; Ed. Cia. das Letras, trad. Paulo Cesar, 2010).

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¹ A função dessa operação, ao meu ver, é correlata a do “Impulso Apoderamento” (Bemächtigungstrieb) descrito por Freud em Além do Princípio de Prazer (1920). Ele o descreve como sendo um modo pelo qual o sujeito encontra de elaborar uma situação de forte impressão vivenciada por ele passivamente. “Fort-da” a brincadeira do “Bebi o-o-o-o” “da” trata-se exatamente disso, a criança na situação passiva em relação a ausência de sua mãe, encena-a como capaz de controlar um brinquedo, o qual é jogado por ela, sumindo de seu campo de visão e, em seguida, puxado segundo a sua vontade, isto é, agora sob controle da situação, ativo. Além disso, Freud dá outro exemplo que é o da criança que, após ter de fazer uma cirurgia com um médico, quando vai brincar com algum amigo, encena-a na brincadeira de “ser médico”, na posição do médico cirurgião. Em ambas situações Freud leva em consideração o caráter sádico de se controlar, de “tomar posse” das situações: no primeiro caso, pode ser que a criança estivesse dizendo, além de “eu tenho o controle”, quando joga o brinquedo, “sim, vá embora, não preciso de você, eu mesmo a mando embora”, e, no caso da outra criança, claramente ela poderia estar reproduzindo, como numa vingança à intrusiva experiência que lhe foi acometida com a cirurgia, mas substituindo o médico cirurgião pelo seu companheiro de brincadeira. Trata-se de uma “inversão da situação”. Freud, em “Mal-estar na Cultura”, quando explica a operação que dá forma para o supereu, usa um vocabulário muito semelhante a esse que citei sobre o “impulso de apoderamento”. Ele diz “Forçosamente a criança teve de renunciar à satisfação dessa agressão vingativa. Ela sai dessa difícil situação econômica por meio de mecanismos conhecidos, incorporando mediante identificação essa autoridade inatacável, que então se transforma no supereu e toma posse de toda agressão que a criança teria gostado de exercer contra ela. (…) É uma inversão da situação, como ocorre com tanta frequência. ‘Se eu fosse o pai e você a criança, eu te trataria mal’”.
Portanto, revela-se, com o conceito de “Impulso de Apoderamento”, quando o empregamos no caso da dobra que se faz na liberdade, que ela consiste numa reação a posição passiva do sujeito diante do determinismo implicado no paradigma da mediação histórica. Critica-se, sádica e masoquistamente — lembrar que a liberdade preditiva sempre foi chamada de auto-privativa ao longo dos textos — , a liberdade, pelo argumento da mediação histórica, para assumir um controle, passando de uma posição passiva para uma ativa diante do presente irreversivelmente determinador e indeterminado pelo sujeito. O passado para aquele que critica a liberdade aparece como fonte de sofrimento e fortes impressões mal elaboradas, que o faz tratar a ação-livre, no presente, a partir da chave impossível para nós, possível idealmente. A condição de incerteza e aparente descontrole é, pelo critico da liberdade, enfrentada com essa operação de “tomada de posse” para torna-se ativo. A crítica “pé no chão” e de bom senso, “não somos livres”, só existe então em função do medo da real condição, a incerteza determinante.

² Interessante destacar também que esse modo de reconhecimento também poderia ser classificado como um modo baseado na “posse” — interessante porque é uma explicação que entra em consonância, no que diz respeito ao nome, ao que Freud chama de “tomar posse” pela operação de inversão do Bemächtigungstrieb. É possível dizer que a “intensão da ação” é produto de um processo de reconhecimento que concede ao sujeito a “posse do ato”. Se assim for, uma relação pode ser espreitada entre a ideia de “continuidade” — já explorada em um texto que escrevi sobre a onda — dos momentos, sustentada na lógica prova-predição, e a ideia de posse.

³ Não-saber aqui está em relação ao outro, deve-se destacar isso. Não se trata, somente, de um medo de não saber, mas de um medo de confessar não saber. Essa situação eu acredito que se explique por um modelo de relação que prescinde desse medo de não saber com o outro. Em um texto meu (a) dediquei a investigação dessa condição a partir do termo "tolo" do qual Clarice Lispector usa em um texto seu; há também um outro (b) em que chamei o tipo de debate em que se busca delimitar o tolo de "tolarização". O medo de ser um tolo socializa os sujeitos e condiciona esse modo de lidar com o não saber, que deve desembocar, de alguma maneira, no argumento do crítico da liberdade. Ainda dedicarei outras reflexões para precisar esse nexo, por enquanto deixo constatado como um caminho possível.

Marcel Delfino Carvalho de Souza

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Beber água com as mãos: sobre a necessidade metafísica da duração em Nietzsche

Quando se sente uma sede intensa, na qual sentimos querer beber toda água do mundo e não temos acesso a um copo, unimos as mãos e com elas criamos uma espécie de copinho humano. No entanto, destoa o fato de gozarmos unicamente com a água que nos cabe, momentaneamente, as mãos, em vez de toda água do mundo. De certa forma, esquecemos toda água que escorre e nos escapa a mão ao beber; parece-nos que toda a água do mundo, aquela que queríamos para saciar nossa necessidade encontra-se ali, consolidada na mão, apartada de toda sua parte que escorre, enquanto incessantemente a torneira jorra agua. Dessa atividade humana, por excelência, é possível evidenciar uma outra atividade mental humana, uma espécie de necessidade de crer na completude e eternidade.

Parece existir aí uma condição para a não-frustração da perda inevitável: a ilusão da posse. A ideia de possuir a água, ter-a em mãos, esquecendo sua condição de existência que é, nessa situação, efêmera e transitória, esquecendo, sobretudo, a incapacidade da mão de segurar a água eficazmente, de maneira duradoura, é inconsciente a real dependência do fluxo de água, o qual provem de fonte externa (existe independente da vontade de quem tem sede), único que faz permanecer cheio as mãos de quem tem sede. E essa inconsciência da condição parece (digo isso devido ao incomodo de não poder gozar daquela agua, parte de toda água do mundo, que nos escapa; aquela que, quando percebemos a falta, temos vontade de transformar a torneira num canudo para com a boca sugar "toda água do mundo") ser essencial para gozar da morte daquela sede de "toda água do mundo".

Essa condição explicita-se em 2 artifícios presentes na atividade humana de beber agua com as mão: 

(i) fazer o copinho para ter em completude a água, na tentativa de consolida-la em mãos para desfrutar delas por completo, i. é, fazer o copinho não para beber água apenas, mas para beber toda água do mundo, íntegra ali, nas mãos do necessitado. 

(ii) Somado a isso, com as mãos, ocultar a perda e possuir o controle temporal, substancial, existencial sobre toda água do mundo, na tentativa de fazer durar a água em meio ao fluxo que impele a perda de alguma água vazando ou transbordando - perda que impossibilitaria o sujeito necessitado de beber "toda água do mundo"; em outras palavras, com as mãos, ocultar a perda é ocultar a real situação, na qual a existência da água não é internamente controlável, não depende da necessidade do indivíduo. Então, por meio desse artifício a mão segura-a independente do tempo e das condições materiais, ou seja, há poder ilimitado de posse para o gozo da mesma.

Portanto, seguindo esta insensata alusão metafórica é possível concluir que, ter por completo e para sempre é o que queremos ao beber agua com copinho de mãos, sem perder, sem frustrar-se.

Assim sendo, a condição da necessidade metafísica da alma de duração, tendência ao eterno e a posse ilimitada, dita por Nietzsche, mostra-se evidente. E desta, criamos instrumentos para contornar a realidade e saciar a necessidade da alma: copinhos de mãos.
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Doravante, ao reavaliar essa metáfora é necessário dizer que ela simplifica com descuidado as diversas características das necessidades fisiológicas e, também, não desenvolve a ideia de possuir toda água do mundo. Notar-se-a, também, ao acompanhar a metáfora, que a água que existe nas mãos no fluxo não somente escorrem, mas transbordam, e o transbordar, de certa maneira não seria motivo para a frustração, mas de tranquilidade, o que há de se considerar dado que, o excedente também faz parte da água do mundo que escapa as mãos. Assim sendo, como não é prescindível esse elemento à imagem da metáfora, ele deverá ser abordado com melhor atenção numa continuação futura desse texto.

Além disso, digo que foram expostas tendências à uma suposta inércia do eterno, oriunda de uma condição prévia, um modo de pensar a existência. Considero existir também uma inclinação humana à um outro eterno, não estacionário mas característico desse fluxo de toda água do mundo, o qual eu poderia discorrer em outro texto, acessando dessa vez outras ideias com outros autores e, talvez, reiterando o meu pensamento nietzschiano, que de Niezsche mesmo, apenas de maneira supérflua e pouco rigorosa eu me empenhei em trabalhar, mas que, apenas assim, me foi passagem para algumas ideias.

Por fim, ainda é necessário dizer a respeito dessa metáfora que dela é possível derivar à uma outra questão que seria a ideia de morte - que toquei, não sem alguma ardileza, ao falar da "morte da sede" - tema privilegiado quando se trata da condição existencial do fluxo e da confluente transformação incessante que dele decorre. Desta forma, expresso e concluo com meu intento de, no futuro, fiar essas linhas soltas desse texto.

Marcel Delfino Carvalho de Souza

quarta-feira, 1 de abril de 2020

LIBERDADE HISTÓRICA

Bem, a ideia de liberdade anteriormente apontada como equívoca sustenta que não é possível prever os acontecimentos em totalidade. Ela ganha força ao se sustentar na ideia de desconhecermos ou não termos a devida precisão sobre os determinantes de nossas ações. Nesse sentido, interessa-me saber, para dar forma a uma possível liberdade, de que modo chega-se na conclusão “não somos livres porque não conseguimos predizer todos acontecimentos”.

Essa conclusão possivelmente se deve ao fato de reconhecermos que quando, por exemplo, esquecemos um celular no ônibus, aconteceu algo no transcorrer da história não percebido, algo que nós fizemos e não percebemos, que nos determinou e não fomos capazes de perceber e evitar. Uma maneira de descrever essa situação é: colocarmos numa cadeia de acontecimentos, um acontecimento, que não foi percebido, determinante para a perda do celular, por exemplo, “o celular escapou do bolso dessa minha calça frouxa”. Trata-se de um acontecimento que não foi predito, e, por assim ter sido, se fez de acontecimento que sustentou a minha não-liberdade, se fez de acontecimento esquecido. 

Nós, então, não podemos nos dizer livres porque não “predizemos” ou “predizemo-nos” acertadamente. Mais precisamente, não fomos capazes de predizer, no passado que se foi. O ato de predizer ou sua falha, se concretizam num momento presente que sucede um momento passado da tentativa de predição, num presente momento de reconhecimento do que “aconteceu”: reconhece-se, então, a perda ou não de algo. Essa é a natureza da consciência que se diz não liberta, é natureza voltada para o reconhecimento da não predição, ou em outras palavras, voltada para a história do fracasso da predição. No entanto, essa frase por inteiro caracteriza apenas a relação da consciência com seu ideal de liberdade. Para conseguir assumir uma outra natureza de consciência possivelmente livre, deve-se dizer, a natureza da consciência é voltada para a história, ponto final.

O acontecimento é reconhecido historicamente, é isso que, nós humanos, fazemos, dizemos “aconteceu”. Explicamos a situação presente a partir de um encadeamento que inventamos no presente. Seria prudente, talvez, dizermos “lembramos” em vez de inventamos, uma vez que o leitor pode estranhar que o passado seja algo inventado, principalmente, logo após de se afirmar uma consciência voltada para a história. É preciso, portanto, diferenciar passado de história.

Em poucas palavras, passado, como pretendemos tratar aqui, é um fato, a história uma experiência de memória. O passado refere-se ao imutável, inquestionável e que se diz por si mesmo. Na lógica do passado, “acontecimento” não é a melhor palavra para usar a fim de chamar algo que se passou, mas sim a palavra “fato”. A história, por sua vez, refere-se ao que é mutável, questionável, que depende sempre de narradores, suas experiências e suas memórias; pra história a melhor palavra para significar o que se passou não seria “fato”, mas sim “acontecimento”. Tanto a história quanto o passado dizem a respeito ao que se passou. Porém, quando se diz que a história é inventada, não está se dizendo “o que acontece conosco não é verdade”, mas sim que, para as coisas “se passarem” elas devem ser criadas como memória e assim tornarem-se história.

Portanto, a ideia de fato se opõe a de acontecimento, porque o fato independe de um narrador, ele independe de alguém dizê-lo ou vê-lo, o fato se passa sem que ninguém o diga e sem que ninguém o veja, independe de testemunhas. O fato é visto independente de um observador, mesmo não tendo sido visto diz-se “é fato, aquilo ocorreu”, ele auto-testemunha-se, é visto por si só. No entanto, da mesma maneira como se duvidou no texto passado da vontade auto-determinante, deve se perguntar: quê é esse fato senão a crença numa dedução ideologicamente sustentada pelo observador?

O observador e seu papel de testemunha é suprimido quando se fala de fatos. Muitos motivos podem estar por trás desse movimento supressor, até mesmo a incapacidade de conviver com essa impossibilidade de se escapar da natureza histórica. Como havia sido discutido sobre a liberdade preditiva no último texto e agora tendo em vista que o ser não-livre é aquele da história do fracasso da predição, deve-se compreender então que o ser livre deve ser o ser do acontecimento. 

A ideologia dedutiva dos fatos concede a eles a característica de serem auto-testemunhas de si mesmos, independem de narradores para estarem na “história”, são visivelmente partes da história, evidentes. Por outro lado, o acontecimento, não a toa como a paixão, é cego, depende sempre de um observador, alguém que o veja, uma testemunha, um narrador. Darei um exemplo: uma foto, uma foto só pode ser aquilo que acreditamos que ela seja, um rastro do passado, quando aquilo que se vê tem para o observador um significado no momento em que a foto se mostra, no presente: isto é, o passado é um sentido presente. 

Isso implica dizer: nada no mundo “era”, segundo a perspectiva da história, antes dos humanos terem visto e dito que “foi”, “aconteceu”. O celular, por exemplo, não se vê a si mesmo sendo perdido, ao menos que imaginemos que ele tenha vida, nesse caso ele auto-testemunharia-se: se ele ficasse no ônibus e não tivesse ninguém para sentir sua falta ou pegá-lo posteriormente dizendo “alguém esqueceu, agora é meu!” não seria ele celular-perdido, não teria realidade como acontecimento, não seria sequer possível dizer que ele já esteve em algum momento lá. A existência de um acontecimento, portanto, depende de um elo entre o que se passou e o que se passa agora, feito sempre por alguém.

Vimos que a liberdade impossível se sustentava num ideal de liberdade aquém ao humano. Percebe-se agora outra face do mesmo ideal, porém no que diz respeito a história. A história dos fatos não é a história humana, mas uma história que, assim como a liberdade auto-privativa, suprime o humano, história ideal. Não é preciso lembrar a história dos vencidos para esclarecer que uma liberdade humana estaria indissociavelmente ligada a uma história humana, ambas voltadas para a história dos sujeitos, isto é, não fatídica mas memorável, questionável, dialogada, narrada de um para outro.

O objetivo desse texto é de, com isso, mostrar uma natureza criativa de elos que não suprime uma suposta realidade dos fatos enquanto dá espaço para os sujeitos. Se entrevê aqui, sobretudo, uma realidade de maior rigor, a dos sujeitos, os quais fazem as histórias que existem na medida em que as contam, isso implica uma necessidade: deles ser ouvidos. Percebe-se, dessa maneira, não apenas uma natureza histórica do laço entre o passado e o presente, memorável, mas uma natureza do laço social, na qual “narração e memória fazem-se de um mesmo rio que é o tempo"1  comum. Uma liberdade histórica, nesse sentido, certamente seria, também, uma liberdade comum.
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1 Mia Couto na conferência dada na UFRGS: https://www.youtube.com/watch?v=IZtc11Bn0M0&t=731s
Marcel Delfino Carvalho de Souza