terça-feira, 31 de março de 2020

Procurada viva ou viva

Fui convocado a escrever. Não hoje , nem ontem, muito menos após o convite destes colegas que confi(n)aram meus desejos. Mas desde o dia em que me autorizei a ler o mundo a partir da poesia e da literatura. Ofício não tão simples quanto tantos deixam (a desejar e) parecer. Não é tarefa simples também matar. O poeta, o escritor e o responsável pela linguagem mata com as palavras o outro que existe em si, num gesto diferenciado de amor pela mortificação da entidade presente em cada corpo ébrio de realismo.

Acredito nessa ideia de que é o autor em prosa o responsável por matar com as palavras a angústia genuína atada ao peito. Letra após letra, desfazendo no ar os dizeres indiziveis, Quem me disse isso foi Manoel de Barros, poeta de inspiração em meus artifícios de matança. Arsenal de pistolas, rifles e escopetas enderaçadas a mim por esta figura são de proveito diário. Também me apoiei nas renúncias do serial killer Robert Zimmerman, objeto das percepções passageiras. Esse que é considerado um dos maiores poetas da atualidade, desde sua geração até a contemporaneidade. Talvez não o conheçam por esse nome. Por que esse não é seu nome verdadeiro. Sua verdade é dita através do estrategista e aniquilador Bob Dylan.

E como eles, não me reconheço como esse que os diz por aí, nos grupos de amigos. Sou Erico, sou Beto, mas nunca Cesar. Sou esse que vocês não enxergam na carne, sou o outro que dá as caras quando o imperceptível me atravessa e diz por mim o impossível na ponta da caneta. Cadernos rasurados, riscados, desenhados, prosaícos e poetizados anunciam ao mundo para o que eu vim, impedindo que o corpo material consuma suas vontades imperiosas. 

Eu não reconheço o desejo de matar nesse corpo que vocês veem. Esse objeto é humano demais. Exponho através da matança dum sujeito que esta a merce d
a verdade encalacrada num corpo de passagem. A passagem é breve, apesar. Rotineira e lenta. Ainda que breve. E como dito, matar com as palavras aquilo que um dia se passou despercebido, não é para tantos, e tantos se arriscam. É preciso colhão, daqueles que homem nenhum tem. A não ser as mulheres em sua infinidade mística

A isso proclamo a chegada da nova era. A era de Joanne. Poeta do velho cangaço, procurada por assassinar sem dó seus ódios interiores, trucidar os homens nojentos e exterminar a partir do ódio a razão descabida de vocês, paus pequenos e insatisfeitos. Pode parecer uma epopeia americana de bang bang, mas não. É só mais uma das facetas que aqui se fazem (des)presentes.


Travel News - Portrait of Annie Oakley

domingo, 15 de março de 2020

A onda, uma continuidade

Não saber muito bem onde se encontra é como não saber bem como você chegou aí, como quando dormimos do lado avesso ao que normalmente estamos acostumados a dormir: acordamos meio perdidos, procurando por pistas nesse estranho quarto invertido que estamos, até que nos localizamos, até lembrarmos. Damos, então, continuidade aquela atividade prazerosa interrompida, mais uma descansadinha nas pálpebras.

Algo parecido acontece quando tomamos um caldo na praia, quando somos arrastados por uma torrente bagunçada de água que nos arremessa lá pra frente até ficarmos com areia nas calças, areia pra caralho, quero dizer, você fechou o calção, usou a cueca certa pra nadar e a areia, ainda assim, entrou e ficou em tudo. Mas isso ainda não é problema, ainda não saímos debaixo d'água, aí, ainda não se sente o peso assado da areia. Debaixo d’água a gente se sente misturado. Mas levantamos. Levantamos e olhamos pra lá, em direção a areia da praia, tentando achar um referencial. Perguntamos: "De onde eu vim?...Qual foi o trajeto?", achamos um relevo na areia da praia, algo familiar, uma curva, uma árvore com alguns pontos coloridos que lembram chinelinhos. “Deve ser lá de onde eu vim”. Para não ir assando com areia e o corpo secando dizemos: “estamos um pouco longe mas é melhor eu voltar pela água pegando mais uma onda”...

Enfim, se não exagero na tentativa de deslocar vocês de onde estão agora para o quarto e desse quarto pra praia, imagino que, ao menos, alguma ideia do tema que pretendo tratar com essa minha brisa tenha ficado um pouco claro, talvez misturado, mas... vai é uma metáfora, me dêem uma chance.

Bom, a onda e o trajeto que buscamos perdidos, eis os temas bem clareados para você, leitor que não curte minha brisa. Esta sensação, tão bem explorada por Marcel Proust, meu xará, pôde desabrochar uma ideia curiosa a respeito de algo que a tempos venho pensando. A saber, a onda. Ela, por sua vez, creio já ter sido bastante bajulada com uma miríade de representações poéticas, já descrita por muitas pessoas, incansavelmente repetida. No entanto, a onda é um tema que mostra sua força irresistível dessa maneira, incansavelmente repetida. Essa é uma característica fundamental da sua existência, a onda, não apenas na boca das pessoas, mas a onda mesma se repete.

A praia e a onda compõem um fenômeno, um evento, que não cessa. Meus antepassados, alguns escravos africanos, outros portugueses colonizadores, viram o mar se repetir como eu vi a esses dias atrás, muito forte, batendo nas rochas e sem cessar. Transgeracionalmente sublime. Alguns poderiam justificar dizendo “a onda é sublime por ser do mar”, isto é, o mar é sublime e a onda se trata, somente, de um resquício dessa potência sublime marítima. Não proponho argumentar a fim de continuar esse debate, mas uma possível objeção e essa ideia de onda como extensão do mar, parte menor, é de que a onda, ao meu ver, é identitária, marca do mar. Difere o mar - estou me lembrando dessa minha forma de ver o mundo quando criança - do rio, da lago. O mar tem esse negócio que é a onda. Tenho curiosidade de saber o que significou o mar para meus antepassados.

Pois ela se repete. Sempre foi onda. Sempre ondas diferentes, antes levando botes que chegavam dos navios negreiros, hoje levando à praia os botes de imigrantes da nossa era da crise das fronteiras. Repetem-se as ondas como as poucas letras do alfabeto para formarem palavras, frases. E quais foram as frases lidas pelos meus antepassados? Das histórias que geralmente chegam a nós, com frequência, as que chegam são a dos vencedores, a do mar brasileiro descoberto por Cabral, a terra brasileira descoberta pelos portugueses. Mas, qual seria o mar dos perdidos, o mar dos escravos, dos esquecidos?

A onda e sua subliminariedade evoca perguntas e teorias na nossa mente, sobre o passado, sobre a origem, a origem das ondas, por exemplo, "será que aquelas micro ondinhas, já foram um dia, lá no fundo do mar, ondonas?", "será que tem uma praia lá no fundo, mas bem lá no fundo, que as ondas são invertidas?", ou quando estamos na parte mais funda, um pouco antes das ondas quebrarem e podemos dar uns pulinhos no momento em que a onda passa no formato de uma barriga, no médio-fundo, vem a lombada e nos levanta bem alto, lá de cima podemos ver muitas coisas que ficam na areia da praia, mas ainda insuficiente para ver, do outro lado, o fim do mar... "será que, se eu for de barco lá no fundo, na hora do pôr do sol, eu chego onde termina o mar e, num salto, piso no sol?".

A onda é lida. Por isso é atravessada pela história. A onda é essa narrativa, história, memória. A onda acontece de novo, ela acontece uma vez, depois outra, e tem esse intervalo de tempo entre uma e outra, tempo no qual acontece uma história, a história da onda. A crista dela vai ficando mais curva, mais pontuda, a espuma aparece, um vale de baixo dela se cava, ela ganha verticalidade, na sua parede pequeninas ondulações agudas mostram a agua correndo, onde poderia estar um surfista, descendo com uma prancha, a onda inclina derradeiramente fecha um pequeno tubo. Tudo muito rápido. Ela quebra, ela vai até a areia e sublima meio que voltando, deixa lá um rastro de espuma com areia molhada, a areia lamacenta, aquele último lugar que a onda mais longa conseguiu chegar.

Com essa descrição quero deixar claro, se a onda é contínua, assim o é porque nós a continuamos, porque há um hábito humano incessante de leitura: sabemos, todas as ondas são diferentes, mas dizemos "a onda", como se todas elas fossem iguais; sabemos que as palavras são diferentes, mas formadas das mesmas vinte e quatro letras.

Ainda que eu esteja passando por um caminho já conhecido, esse das ondas diferentes porém iguais, exigindo de vocês um pouco mais de sensibilidade ao óbvio, tomo esse caminho a fim de fazer um desvio, o qual vem a seguir.

Há algo que nos mobiliza para narração. Esse constante exercício de ler repetições de ondas diferentes, trangeracionalmente diferentes, chama atenção por um anseio não apenas por ler, mas pelo que faz a leitura possível, eu diria "o anseio primitivo da leitura", anseio pelo rastro, talvez.

O rastro é primitivo para os humanos, ele está voltado para nossa primitividade, a capacidade de seguir pistas, de buscar, procurar.  

O rastro indica, além de uma narrativa, a continuidade, indica possível continuidade. O rastro, bem como a pista de um crime, seduz por continuidade. Como se encontrássemos alguns cacos descontínuos no chão, vamos investigando suas formas, suas pontas, suas rachaduras, encontrando uma harmonia entre os pedaços e uma desarmonia deles sozinhos. Vamos lendo, como se estivéssemos lendo as pistas de um quarto do avesso, rastreando familiaridade diante de algo estranho. Por aqui caminha o pensamento, mas não por um fio de letras, apenas. Caminha o pensamento por trombadas, cheiros, sabores de bala, de chiclete, cheiro de lojas, gosto de água salgada, agua cheio de areia na bermuda, na bunda. É como a areia na calça que as palavras aparecem.

O caminho do rastro, dessas palavras que lemos, vai por aí, eu entendo. Trata-se de uma continuidade de difícil precisão, continuidade muitas vezes não esperada. Talvez, pela presente necessidade da investigação que se sente, pudéssemos pensar que, a investigação, na verdade não seria uma apuração de dados passados, senão a criação presente de histórias, criação necessária. Nesse sentido, a suposta continuidade de um passado bem apurado, após uma perfeita investigação, acaba parecendo uma forma um pouco imprecisa de se ler uma onda. Talvez, portanto, seja mais prudente dizer: descontinuidade repetida.

Aliás, o sublime do mar pode se explicar aqui. O mar como um quebra-cabeça absurdo, completamente descontínuo, estilhaçado em infinitos pedaços, de se perder de vista, ainda assim apresenta pequenos caquinhos de ondas brilhando, lá no fundo, batendo em algumas pedras ou nas micro-ondulações no corpo de uma grande onda, as mesmas ondas exigem leitura. O mar, dessa forma, mostra-se como enigma real. A força das perguntas "de onde eu vim?... qual foi o trajeto?" ficam mais sublimes quando acabamos por olhar para ele com certa sinceridade, com realidade, sabendo que é o mesmo mar lido por seus antepassados. A força de criação da história, que se faz movida por esse arrastado não saber de si, esse esquecimento sobre as origens, nos move assim: as coisas nos arrastam e continuamos... continuamos deitados do avesso.


Marcel Delfino Carvalho de Souza

Sobre o escrever

Aqui a gente começa:


Bruno Gomes

Eu deveria estar fazendo qualquer coisa menos isso agora: escrever. As palavras têm uma espécie de cola, e enquanto fazem nossos olhos caminharem deixam rastros e se espalham por novos caminhos. Como gasolina, resina, aqui se adentra ao furo.


A ação de uma palavra é sempre falha, não apenas aos olhos de um ..., mas aos olhos de um falso artista. Eu sempre falho em me fazer límpido, pensar em começar a escrever é um sofrimento, já o ato é como um escarro ou como um espirro preso. Pra mim não sai, e se sai são algumas lágrimas mal choradas pelo nariz. Mas se não exitarmos em construir pontes de palavras, assim como faço agora evitando apagar, e me apagar, talvez sobre algo feio. Algo feio, mas cujo qual dê para os olhos caminharem. Feito, feio.


É simplesmente previsível a capacidade da escrita de quase sempre ser um pavor, uma dificuldade, um entrave. Que experiência é essa que nos coloca frente ao que? Que suposta universalidade desta falha? Acho que se propor a resposta é pretensioso, buscar alcança-lá sabendo que não há fim me da ânimo. O fato de termos optado por fazer isto em grupo é significativo, somos em cinco seres humanos do planeta terra, do planeta de cada um, que compartilham a dificuldade, no meu caso,  de escrever viver e amar. Eu não sei se sei ou não, mas tenho medo. E com vocês que leem ou criam meu medo diminui, ao saber que tem algo que temem também. Andemos sobre essas tábuas feias.




Pedro Misailidis Antonini

(A primeira coisa que fiz antes de iniciar a escrita foi pegar um livro com o título "Palavra e verdade" e deixá-lo ao lado do notebook. Não fiz questão de abrir nem ler uma palavra se quer, mas fiz questão que estivesse ali, enquanto eu escrevi. Quem sabe Isso diga algo.)


Não se pode desdizer o que já foi dito, é a propriedade da língua. Mas pode-se carregar a ilusão de apagar o que foi escrito, e entre temer e tremer diante daquilo que se fala, fico com a falsa escolha de poder apagar o que antes foi feito. Ainda que reste um rastro daquilo que se apaga do que se escreve, ao menos ninguém vê.


Inspirado pelo lapso, que leu, em "exitar", "excitar", a escrita, às vezes, hesita, tanto quanto excita.  Se demora. Também exita. Em mim, quanto mais hesita, mais excita e mais exita. Mas de hesitação em excitação, alguma coisa se forma e se cria.


Mas logo para, e a inspiração, que vinha como enchente, seca.


Logo se mostra que não era sobre exitar, mas sobre hesitar. E novamente como lapso, enquanto escrevo, o exitar se torna evitar. Efeito de um sintoma, é claro. O objetivo da minha escrita não é exitar, mas talvez hesitar e evitar. Quem sabe a partir disso algo se crie, mas por enquanto ficamos com isso.


Por que escrever?




Marcel Delfino Carvalho de Souza

Não tenho achado coisa mais desfalecida do que escrever sobre escrever. Não dá vontade nem de tentar. Talvez seja um compromisso desnecessário que tenho com uma verdade que me deixa assim. Mas, não. A escrita acontece e ela está além do escrever. O "escrever" sobre o qual se escreve, não tem força nenhuma, não é a escrita mesma. 


As vezes, de repente, acontece de escrevermos sobre o escrever. Não é contingente. Também não é uma escolha. É coisa de paixão. Vrau! Voce rasga o papel e fala. Voce não hesita. Voce pula na enchente. O arranjo de madeiras pode ser uma bosta, mas é arranjo, ainda que sofrido-arranjo. Cada prego mal-pregado é testemunho daquilo que foi necessário ser feito. E, de repente, estamos aqui, falei sobre escrever. 


É exatamente disso que se trata. A escrita tem um poder da verdade, porque ela a esconde. Quem é voce pra falar de um segredo desvelado. Veja, não faz nexo: um segredo desvelado, pronto, não vale a pena escrever, pois o segredo já está escrito em algum lugar, vá procurar. Em vez de um compromisso desnecessário com a verdade, eu prefiro dizer que, escrever sobre escrever é um paradoxo desnecessário. 


O "'paradoxo' é o nome que damos à ignorância das causas mais profundas das atitudes humanas...", é o que diz Ecléa Bosi. Assumir a superfície desértica, seca, ensejando água, o que tem mais água na água, é, em suma, fruir a escrita, assumir como verdade a história velada de enchentes que se escondem no deserto... que seja medo de falecer de sede, que seja pura ignorância ou fantasia desmedida, que seja tentativa de se enganar. Bem, talvez seja essa uma boa causa profunda: engano! U
ma causa profunda sobre a escrita do que a escrita é. Então, pode ser que tenhamos encontrado o verdadeiro paradoxo, um paradoxo necessário: escrever por engano.

domingo, 1 de março de 2020

O PROBLEMA DA LIBERDADE


Pequenas ações como mexer um braço para lá, deslocar-se daqui para ali, pegar uma bola lançada a nós em um jogo, podem ser consideradas como ações de escolha livre? É difícil negar tal concepção por serem elas conscientes. Pode-se, de maneira um tanto positivista, dizer: são facilmente testáveis e reprodutíveis, o próprio leitor agora pode fazer esse teste mexendo seus braços por livre escolha. Uma de suas evidências é a possibilidade humana de suicídio, levadas nas últimas instâncias da autonomia motora, as pequenas ações podem justificar, de certo modo, uma liberdade de ação sobretudo capaz de aniquilar a si mesma, acabar com a própria vida, com a própria liberdade.

No entanto, seria prudente perguntar-se pela consistência dessa consciência que se justifica livre apenas pela sensação de agir autonomamente: qual é a natureza da consciência que sente domar sua musculatura aquém determinantes externos, ou até mesmo internos, a ponto de conseguir acabar com a própria vida? Seria, talvez, pretencioso perguntarmo-nos pelos limites dessa consciência que se sente livre para escolher, mas mesmo sem essa resposta é necessário considerar: há a possibilidade do desconhecimento, por parte dessa consciência, sobre a complexidade dos determinantes, que podem existir na base das ações e estarem, ao mesmo tempo, além daquilo do que a razão é capaz de conceber.

Uma das maneiras de se explicitar essa falsa liberdade é com a ideologia. A ideologia, como aquela que atravessa o sujeito situado num mundo composto por condições objetivas historicamente dispostas, seria um possível determinante aquém as escolhas, que chamamos há pouco de livre, imediatas do sujeito. A ideologia seria, nesse sentido, algo que permite, enquanto o sujeito se sente livre agindo, estar, concomitantemente, submisso a um determinante que não consegue perceber de imediato. Portanto, o sujeito poderia ser livre, mas somente na medida em que se sente livre, somente no nível da ideologia.

Tratam-se, essas, de duas objeções feitas a ação motora livre que se sustentam na suspeita a respeito do sentimento consciente de se sentir livre para agir, este sentimento parece conter uma fragilidade objetável. Primeiramente questionou-se pelos limites da consciência e, num segundo momento, por desdobramento, assinalou-se as condições objetivas que podem estar aquém as escolhas e acabarem por poder determiná-las. Porém é razoável também, da mesma maneira como foi prudente perguntar sobre os limites da sensação de consciência, perguntar-se agora pela "fragilidade" que o último argumento encontra na sensação de liberdade.

Essa liberdade, da qual os sujeitos não gozam pelas determinações não percebidas, estaria calcada na noção de que, o sentimento de liberdade pode não corresponder a uma suposta fatídica liberdade. O sentimento é empregado nessas objeções como substância que turva a noção das condições objetivas e, assim, não nos permite ser livres intelectualmente. Não é pretensão desse texto objetar que a ideologia nos atravesse, mas, com qual sentimento ela foi apreendida, qual o sentimento da razão, da certeza de que ela nos atravessa? Nenhum, neutro? Essa é uma pergunta necessária para se pensar numa liberdade tão sóbria quanto a sensibilidade dos sujeitos para com a ideologia.

Para pensar essa liberdade, seria necessário, antes, falar a respeito desse determinismo sob o qual o sujeito está envolvido quando as análises de suas ações são baseadas numa noção específica de liberdade, que concluem ser o sujeito desprovido dela. Primeiramente, nas simples ações motoras: o sujeito livre, aqui, seria o sujeito capaz de predizer suas ações, ele diz “vou mexer o braço” e seu braço se mexe, “vou sair daqui e ir para ali” e assim acontece. Aplicado a objeção de que essa suposta capacidade preditora ocorre apenas no nível da sensação e da ideologia, passa-se, em seguida, a pensar, “seria possível mesmo uma ação livre?”. E, exatamente com essa última pergunta, pode-se evidenciar uma repetição. Repare, leitor, que tanto quando se falou de ação motora, quanto se perguntou sobre sentir agir, mencionou-se ali uma ideia de liberdade que é ou concebida como a capacidade de predizer o futuro sobre si, ou dita como inexistente. São ideias que se encadeiam de modo a fazer do sentimento de liberdade uma pedra no caminho da predição. Porém, qual o caráter do sentimento que inviabiliza tal empenho?

Essa é uma pergunta que deveria ser feita, para se discutir a liberdade e não o sentimento, antes, de maneira invertida, pois assim seria possível compreender os limites dessa liberdade elegida como ideal nos exemplos: qual o caráter dessa liberdade que o sentimento lhe é nociva? Assim é possível descrevê-la. Essa liberdade é preditiva. Para o seu desfrutar completo, exige-se um funcionamento consciente preditivo que, no entanto, no nível da ideologia que contempla todos seres humanos, como exemplificamos, fica claro não ser concebível. O que torna a liberdade algo possível apenas de se conjecturar, mas liberdade efetiva, experimentada, não.

A incapacidade preditiva é inerente ao humano, tanto não podemos prever o futuro em sua totalidade que, este, por vezes nos surpreende com arbitrariedades jamais pensadas, o que pode muito bem favorecer a hipótese de que a complexidade dos determinantes dos acontecimentos nos escapa, a ponto de, inclusive, sermos causa de sofrimentos que nós mesmos nos acometemos, por exemplo, quando esquecemos algo num ônibus, ou perdemos algo em alguma loja da cidade, como prever tais acontecimentos? Nesse sentido, pela incapacidade preditiva ser parte constituinte da nossa consciência, porque dizer que, se existe uma liberdade ela deve ser a que consegue predizer? É se auto-privar, em outras palavras, trata-se de uma liberdade da ordem, se não do impossível, do ideal jamais provado, experimentado.

Seria, portanto, proveitoso, em vez de tratarmos a liberdade por algo único e aversivo aos sentimentos, o que acaba por submeter nossas escolhas a história de determinantes que nos escapam, buscar apreendê-la nas capacidades conscientes que não se submetam a hierarquias ideais estruturantes de uma incapacidade de se ser livre, como a do sentimento/intelecto. Uma outra perspectiva poderia ser desenvolvida destrinchando essa relação aprisionadora, auto-privativa, demostrando, por fim, uma ideia emancipada de liberdade, sentida, possível e real.


Marcel Delfino Carvalho de Souza