Pequenas
ações como mexer um braço para lá, deslocar-se daqui para ali, pegar uma bola
lançada a nós em um jogo, podem ser consideradas como ações de escolha livre? É
difícil negar tal concepção por serem elas conscientes. Pode-se, de maneira um
tanto positivista, dizer: são facilmente testáveis e reprodutíveis, o próprio
leitor agora pode fazer esse teste mexendo seus braços por livre escolha. Uma
de suas evidências é a possibilidade humana de suicídio, levadas nas últimas
instâncias da autonomia motora, as pequenas ações podem justificar, de certo
modo, uma liberdade de ação sobretudo capaz de aniquilar a si mesma, acabar com a própria vida, com a própria liberdade.
No
entanto, seria prudente perguntar-se pela consistência dessa consciência que se
justifica livre apenas pela sensação de agir autonomamente: qual é a natureza da
consciência que sente domar sua musculatura aquém determinantes externos, ou
até mesmo internos, a ponto de conseguir acabar com a própria vida? Seria,
talvez, pretencioso perguntarmo-nos pelos limites dessa consciência que se sente
livre para escolher, mas mesmo sem essa resposta é necessário considerar: há a
possibilidade do desconhecimento, por parte dessa consciência, sobre a complexidade dos determinantes, que podem existir na base das ações e estarem,
ao mesmo tempo, além daquilo do que a razão é capaz de conceber.
Uma
das maneiras de se explicitar essa falsa liberdade é com a ideologia. A
ideologia, como aquela que atravessa o sujeito situado num mundo composto por
condições objetivas historicamente dispostas, seria um possível determinante aquém
as escolhas, que chamamos há pouco de livre, imediatas do sujeito. A ideologia seria,
nesse sentido, algo que permite, enquanto o sujeito se sente livre agindo, estar,
concomitantemente, submisso a um determinante que não consegue perceber de
imediato. Portanto, o sujeito poderia ser livre, mas somente na medida em que se
sente livre, somente no nível da ideologia.
Tratam-se,
essas, de duas objeções feitas a ação motora livre que se sustentam na suspeita
a respeito do sentimento consciente de se sentir livre para agir, este
sentimento parece conter uma fragilidade objetável. Primeiramente questionou-se
pelos limites da consciência e, num segundo momento, por desdobramento,
assinalou-se as condições objetivas que podem estar aquém as escolhas e
acabarem por poder determiná-las. Porém é razoável também, da mesma maneira
como foi prudente perguntar sobre os limites da sensação de consciência, perguntar-se
agora pela "fragilidade" que o último argumento encontra na sensação de liberdade.
Essa liberdade, da qual os sujeitos não gozam pelas determinações não percebidas, estaria calcada na noção de que, o sentimento de liberdade pode não corresponder a uma suposta fatídica liberdade. O sentimento é empregado nessas objeções como
substância que turva a noção das condições objetivas e, assim, não nos permite
ser livres intelectualmente. Não é pretensão desse texto objetar que a ideologia
nos atravesse, mas, com qual sentimento ela foi apreendida, qual o sentimento
da razão, da certeza de que ela nos atravessa? Nenhum, neutro? Essa é uma
pergunta necessária para se pensar numa liberdade tão sóbria quanto a
sensibilidade dos sujeitos para com a ideologia.
Para
pensar essa liberdade, seria necessário, antes, falar a respeito desse
determinismo sob o qual o sujeito está envolvido quando as análises de suas
ações são baseadas numa noção específica de liberdade, que concluem ser o
sujeito desprovido dela. Primeiramente, nas simples ações motoras: o sujeito
livre, aqui, seria o sujeito capaz de predizer suas ações, ele diz “vou mexer o
braço” e seu braço se mexe, “vou sair daqui e ir para ali” e assim acontece. Aplicado
a objeção de que essa suposta capacidade preditora ocorre apenas no nível da
sensação e da ideologia, passa-se, em seguida, a pensar, “seria possível mesmo
uma ação livre?”. E, exatamente com essa última pergunta, pode-se evidenciar
uma repetição. Repare, leitor, que tanto quando se falou de ação motora, quanto
se perguntou sobre sentir agir, mencionou-se ali uma ideia de liberdade que é
ou concebida como a capacidade de predizer o futuro sobre si, ou dita como
inexistente. São ideias que se encadeiam de modo a fazer do sentimento de
liberdade uma pedra no caminho da predição. Porém, qual o caráter do sentimento
que inviabiliza tal empenho?
Essa
é uma pergunta que deveria ser feita, para se discutir a liberdade e não o
sentimento, antes, de maneira invertida, pois assim seria possível compreender os
limites dessa liberdade elegida como ideal nos exemplos: qual o caráter dessa
liberdade que o sentimento lhe é nociva? Assim é possível descrevê-la. Essa
liberdade é preditiva. Para o seu desfrutar completo, exige-se um
funcionamento consciente preditivo que, no entanto, no nível da ideologia que
contempla todos seres humanos, como exemplificamos, fica claro não ser
concebível. O que torna a liberdade algo possível apenas de se conjecturar, mas
liberdade efetiva, experimentada, não.
A
incapacidade preditiva é inerente ao humano, tanto não podemos prever o futuro em sua totalidade que,
este, por vezes nos surpreende com arbitrariedades jamais pensadas, o que pode
muito bem favorecer a hipótese de que a complexidade dos determinantes dos
acontecimentos nos escapa, a ponto de, inclusive, sermos causa de sofrimentos
que nós mesmos nos acometemos, por exemplo, quando esquecemos algo num ônibus,
ou perdemos algo em alguma loja da cidade, como prever tais acontecimentos? Nesse sentido, pela incapacidade
preditiva ser parte constituinte da nossa consciência, porque dizer que, se
existe uma liberdade ela deve ser a que consegue predizer? É se auto-privar, em
outras palavras, trata-se de uma liberdade da ordem, se não do impossível, do
ideal jamais provado, experimentado.
Seria,
portanto, proveitoso, em vez de tratarmos a liberdade por algo único e aversivo
aos sentimentos, o que acaba por submeter nossas escolhas a história de
determinantes que nos escapam, buscar apreendê-la nas capacidades conscientes
que não se submetam a hierarquias ideais estruturantes de uma incapacidade de
se ser livre, como a do sentimento/intelecto. Uma outra perspectiva poderia ser
desenvolvida destrinchando essa relação aprisionadora, auto-privativa,
demostrando, por fim, uma ideia emancipada de liberdade, sentida, possível e
real.
Marcel Delfino Carvalho de Souza
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