domingo, 15 de março de 2020

A onda, uma continuidade

Não saber muito bem onde se encontra é como não saber bem como você chegou aí, como quando dormimos do lado avesso ao que normalmente estamos acostumados a dormir: acordamos meio perdidos, procurando por pistas nesse estranho quarto invertido que estamos, até que nos localizamos, até lembrarmos. Damos, então, continuidade aquela atividade prazerosa interrompida, mais uma descansadinha nas pálpebras.

Algo parecido acontece quando tomamos um caldo na praia, quando somos arrastados por uma torrente bagunçada de água que nos arremessa lá pra frente até ficarmos com areia nas calças, areia pra caralho, quero dizer, você fechou o calção, usou a cueca certa pra nadar e a areia, ainda assim, entrou e ficou em tudo. Mas isso ainda não é problema, ainda não saímos debaixo d'água, aí, ainda não se sente o peso assado da areia. Debaixo d’água a gente se sente misturado. Mas levantamos. Levantamos e olhamos pra lá, em direção a areia da praia, tentando achar um referencial. Perguntamos: "De onde eu vim?...Qual foi o trajeto?", achamos um relevo na areia da praia, algo familiar, uma curva, uma árvore com alguns pontos coloridos que lembram chinelinhos. “Deve ser lá de onde eu vim”. Para não ir assando com areia e o corpo secando dizemos: “estamos um pouco longe mas é melhor eu voltar pela água pegando mais uma onda”...

Enfim, se não exagero na tentativa de deslocar vocês de onde estão agora para o quarto e desse quarto pra praia, imagino que, ao menos, alguma ideia do tema que pretendo tratar com essa minha brisa tenha ficado um pouco claro, talvez misturado, mas... vai é uma metáfora, me dêem uma chance.

Bom, a onda e o trajeto que buscamos perdidos, eis os temas bem clareados para você, leitor que não curte minha brisa. Esta sensação, tão bem explorada por Marcel Proust, meu xará, pôde desabrochar uma ideia curiosa a respeito de algo que a tempos venho pensando. A saber, a onda. Ela, por sua vez, creio já ter sido bastante bajulada com uma miríade de representações poéticas, já descrita por muitas pessoas, incansavelmente repetida. No entanto, a onda é um tema que mostra sua força irresistível dessa maneira, incansavelmente repetida. Essa é uma característica fundamental da sua existência, a onda, não apenas na boca das pessoas, mas a onda mesma se repete.

A praia e a onda compõem um fenômeno, um evento, que não cessa. Meus antepassados, alguns escravos africanos, outros portugueses colonizadores, viram o mar se repetir como eu vi a esses dias atrás, muito forte, batendo nas rochas e sem cessar. Transgeracionalmente sublime. Alguns poderiam justificar dizendo “a onda é sublime por ser do mar”, isto é, o mar é sublime e a onda se trata, somente, de um resquício dessa potência sublime marítima. Não proponho argumentar a fim de continuar esse debate, mas uma possível objeção e essa ideia de onda como extensão do mar, parte menor, é de que a onda, ao meu ver, é identitária, marca do mar. Difere o mar - estou me lembrando dessa minha forma de ver o mundo quando criança - do rio, da lago. O mar tem esse negócio que é a onda. Tenho curiosidade de saber o que significou o mar para meus antepassados.

Pois ela se repete. Sempre foi onda. Sempre ondas diferentes, antes levando botes que chegavam dos navios negreiros, hoje levando à praia os botes de imigrantes da nossa era da crise das fronteiras. Repetem-se as ondas como as poucas letras do alfabeto para formarem palavras, frases. E quais foram as frases lidas pelos meus antepassados? Das histórias que geralmente chegam a nós, com frequência, as que chegam são a dos vencedores, a do mar brasileiro descoberto por Cabral, a terra brasileira descoberta pelos portugueses. Mas, qual seria o mar dos perdidos, o mar dos escravos, dos esquecidos?

A onda e sua subliminariedade evoca perguntas e teorias na nossa mente, sobre o passado, sobre a origem, a origem das ondas, por exemplo, "será que aquelas micro ondinhas, já foram um dia, lá no fundo do mar, ondonas?", "será que tem uma praia lá no fundo, mas bem lá no fundo, que as ondas são invertidas?", ou quando estamos na parte mais funda, um pouco antes das ondas quebrarem e podemos dar uns pulinhos no momento em que a onda passa no formato de uma barriga, no médio-fundo, vem a lombada e nos levanta bem alto, lá de cima podemos ver muitas coisas que ficam na areia da praia, mas ainda insuficiente para ver, do outro lado, o fim do mar... "será que, se eu for de barco lá no fundo, na hora do pôr do sol, eu chego onde termina o mar e, num salto, piso no sol?".

A onda é lida. Por isso é atravessada pela história. A onda é essa narrativa, história, memória. A onda acontece de novo, ela acontece uma vez, depois outra, e tem esse intervalo de tempo entre uma e outra, tempo no qual acontece uma história, a história da onda. A crista dela vai ficando mais curva, mais pontuda, a espuma aparece, um vale de baixo dela se cava, ela ganha verticalidade, na sua parede pequeninas ondulações agudas mostram a agua correndo, onde poderia estar um surfista, descendo com uma prancha, a onda inclina derradeiramente fecha um pequeno tubo. Tudo muito rápido. Ela quebra, ela vai até a areia e sublima meio que voltando, deixa lá um rastro de espuma com areia molhada, a areia lamacenta, aquele último lugar que a onda mais longa conseguiu chegar.

Com essa descrição quero deixar claro, se a onda é contínua, assim o é porque nós a continuamos, porque há um hábito humano incessante de leitura: sabemos, todas as ondas são diferentes, mas dizemos "a onda", como se todas elas fossem iguais; sabemos que as palavras são diferentes, mas formadas das mesmas vinte e quatro letras.

Ainda que eu esteja passando por um caminho já conhecido, esse das ondas diferentes porém iguais, exigindo de vocês um pouco mais de sensibilidade ao óbvio, tomo esse caminho a fim de fazer um desvio, o qual vem a seguir.

Há algo que nos mobiliza para narração. Esse constante exercício de ler repetições de ondas diferentes, trangeracionalmente diferentes, chama atenção por um anseio não apenas por ler, mas pelo que faz a leitura possível, eu diria "o anseio primitivo da leitura", anseio pelo rastro, talvez.

O rastro é primitivo para os humanos, ele está voltado para nossa primitividade, a capacidade de seguir pistas, de buscar, procurar.  

O rastro indica, além de uma narrativa, a continuidade, indica possível continuidade. O rastro, bem como a pista de um crime, seduz por continuidade. Como se encontrássemos alguns cacos descontínuos no chão, vamos investigando suas formas, suas pontas, suas rachaduras, encontrando uma harmonia entre os pedaços e uma desarmonia deles sozinhos. Vamos lendo, como se estivéssemos lendo as pistas de um quarto do avesso, rastreando familiaridade diante de algo estranho. Por aqui caminha o pensamento, mas não por um fio de letras, apenas. Caminha o pensamento por trombadas, cheiros, sabores de bala, de chiclete, cheiro de lojas, gosto de água salgada, agua cheio de areia na bermuda, na bunda. É como a areia na calça que as palavras aparecem.

O caminho do rastro, dessas palavras que lemos, vai por aí, eu entendo. Trata-se de uma continuidade de difícil precisão, continuidade muitas vezes não esperada. Talvez, pela presente necessidade da investigação que se sente, pudéssemos pensar que, a investigação, na verdade não seria uma apuração de dados passados, senão a criação presente de histórias, criação necessária. Nesse sentido, a suposta continuidade de um passado bem apurado, após uma perfeita investigação, acaba parecendo uma forma um pouco imprecisa de se ler uma onda. Talvez, portanto, seja mais prudente dizer: descontinuidade repetida.

Aliás, o sublime do mar pode se explicar aqui. O mar como um quebra-cabeça absurdo, completamente descontínuo, estilhaçado em infinitos pedaços, de se perder de vista, ainda assim apresenta pequenos caquinhos de ondas brilhando, lá no fundo, batendo em algumas pedras ou nas micro-ondulações no corpo de uma grande onda, as mesmas ondas exigem leitura. O mar, dessa forma, mostra-se como enigma real. A força das perguntas "de onde eu vim?... qual foi o trajeto?" ficam mais sublimes quando acabamos por olhar para ele com certa sinceridade, com realidade, sabendo que é o mesmo mar lido por seus antepassados. A força de criação da história, que se faz movida por esse arrastado não saber de si, esse esquecimento sobre as origens, nos move assim: as coisas nos arrastam e continuamos... continuamos deitados do avesso.


Marcel Delfino Carvalho de Souza

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